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quinta-feira, 3 de maio de 2007

A única leitura (realmente) possível

Passado o tsunami que não conseguiu derrubar nem Lula, nem o Partido dos Trabalhadores, ouvi de um juiz de direito o comentário de que já não havia mais partido político digno de sua confiança, eis que era no PT que ele houvera depositado suas esperanças. Tentei explicar a ele que o partido, a despeito de possíveis erros ou mesmo crimes porventura praticados por alguns (hipótese que só admiti em tese, para fomentar o debate), continuava forte, coeso, zeloso dos ideais que ensejaram sua fundação no final dos anos 80. Dizia eu, não era possível condenar os 800 mil filiados por conta de escorregões (sem entrar no mérito se verdadeiros ou falsos, graves ou não) de dois ou três. O juiz me ouviu, mas não pareceu ter levado a sério minhas palavras. Continuou dizendo que havia perdido a esperança no partido e ponto final.

Dia desses passei próximo ao gabinete dele. Tive um comichão de entrar e provocá-lo. Não entrei, não falei com ele. Optei pelo silêncio; não tenho o hábito de tripudiar. Ia dizer que, apesar dos mais recentes acontecimentos envolvendo magistrados de alto escalão, diferentemente dele em relação ao meu partido, eu ainda acreditava no Poder Judiciário.

E tem que ser assim. Não temos saída, senão acreditarmos nas instituições que construímos, nas quais depositamos nossa mais ingênua confiança. Amadurecemos ao descobrir que as instituições, porque humanas, são falíveis. É nossa tarefa resgatar propósitos, retomar caminhos. É nas mazelas - sejam verídicas ou falseadas - que identificamos nossa humanidade, na qual está contida nossa capacidade de nos recompor, de superar nossa inata fragilidade. É na consciência de que somos humanos que podemos alimentar nossos sonhos, nossas esperanças, nossa crença na utopia.

Ao contrário do desânimo que abateu grande parte dos colegas de profissão em razão dos episódios recentes envolvendo operadores do direito, eu prefiro fazer uma leitura otimista. São duas as leituras possíveis: ou a de que o caos nos alcançou finalmente e não há salvação, pois nem em juízes podemos mais confiar, ou a de que, até que enfim, começamos a denunciar, investigar, punir quem até anos atrás parecia intocável, acima da lei e da justiça.

Cresci ouvindo que determinada casta da sociedade, especialmente autoridades, jamais seria responsabilizada e posta atrás das grades porque o Brasil não era um país sério. Não posso, portanto, deixar de regozijar-me ao ver que se enganaram os profetas do caos que tentaram me dar lições de conformismo - que eu, felizmente, recusei. Acredito nesse processo de depuração das instituições que, na essência, é o aperfeiçoamento da própria raça humana.

Por isso, das leituras possíveis, prefiro a que nos permite sobreviver, seguir adiante.

É nessa perspectiva que, por lapidar, transcrevo abaixo a íntegra do artigo que o advogado e jornalista Walter Ceneviva publicou na Folha de São Paulo, na edição de 28 de abril:

Judiciário em choque

Os trabalhadores jurídicos estão em choque provocado pela crise do escândalo em curso. Não os consola dizer que os corruptos são minoria. Mais importante será reconhecer que o escândalo teria menores proporções se os órgãos disciplinadores das profissões envolvidas houvessem sido atentos para indícios e evidências, nos quais é possível caracterizar um começo de ilicitudes e de desmandos para, a partir daí, desenvolver investigações sérias e profundas.

Publiquei nesta mesma Folha, em 19 de agosto de 1979 (sim, há quase 28 anos), "Perspectivas do sistema judiciário brasileiro". Uma das minhas conclusões, perdoada a pretensão, foi profética: "O caos se aproxima". Fiz sugestões corretoras. Nesse velho texto, concluí que as condições então dominantes se revelavam explosivas. E anotei: "O sistema judicial brasileiro precisa acordar para essa realidade. É bom que o faça logo. Até por instinto de sobrevivência digna".

Fui tachado de pessimista. Alguns me viram adversário da magistratura. Não liguei, porque tenho clara visão de que os "operários" da máquina da Justiça são irmãos do mesmo ofício. Todos nós ligamos constitucionalmente a tarefa de dar a cada um o que é seu.

Quando o Judiciário acumula processos, sem os julgar, perdemos todos. Quando se entrega ao Executivo, permitindo que eternize o calote, perdemos todos. Quando os tribunais se fecham sobre si mesmos, recusando-se a averiguar notícias sérias sobre corrupção de seus componentes, quando a Ordem dos Advogados não apura condutas irregulares de seus inscritos, inclusive no despreparo profissional deles, quando o Ministério Público mantém silêncio em face de exageros e injustiças de seus membros, com olhos nas câmeras de televisão, descurando do justo, perdemos todos.

Perdem também a moralidade (exigência do artigo 37 da Constituição) e a ética, ausente nos eventos destes dias. A crise atual tem o lado positivo ao afastar a visão do juiz intocável, nas palavras do ministro Gilmar Dipp, do STJ, em entrevista nesta Folha. O juiz vai ampliar a percepção de que, como agente público, está a serviço do povo, na feliz avaliação de Dipp.

A esperança de dias melhores parecerá oca para quem viva o mundo das nossas justiças injustas, mas a situação atual é diferente. As medidas adotadas pela Polícia Federal com muita qualidade foram abonadas pelo despacho severo, mas justo, do ministro Cesar Peluso. O vazamento que beneficiou os acusados foi o contraponto lamentável, pois ocultaram bens, transferiram valores -segundo a polícia-, mas alguns bons efeitos são notados.

Relendo, contudo, as palavras de 1979 e comparando a descrição, as críticas e sugestões balzaquianas, fico em dúvida quanto à possibilidade da breve melhora estrutural desejada. Juízes, promotores e advogados devem defender sua verdade. Mas isso tem um preço, que não vem sendo pago, da verdade não corporativa na crítica dos comportamentos irregulares. Nesse perfil é natural o destaque do juiz, pois sua sentença concretiza a lei. O juiz inepto é mais fácil de afastar. O corrupto é arisco.

Sobrevive até na indiferença culposa de seus iguais. É preciso reverter o quadro.