Botão

sábado, 1 de setembro de 2007

Um governador de “gabarito”

Luís Antônio Albiero
Assessor jurídico da bancada do PT na Alesp


A bancada do PT, capitaneada pelo líder Simão Pedro, ajuizou ação popular com o objetivo de obter o reconhecimento de que são nulos os dois primeiros decretos que o governador José Serra editou já no mesmo dia de sua posse, em 1º de janeiro de 2007.

O primeiro deles anunciou, segundo consta de seu texto, a singela alteração de denominações de secretarias, circunstância que, numa leitura superficial, pareceu estar conforme às regras do direito administrativo. O segundo deles, porém, permitiu enxergar a profundidade daquilo que o primeiro tentava esconder. Por ele, o governador concebeu toda a estruturação da agora denominada secretaria de ensino superior. Vale dizer, criou dita secretaria, e não apenas reformulou a antiga, de turismo, como o decreto anterior pretendia fazer crer.

Uma reflexão acerca do primeiro decreto já permitia ao menos indagar se é mesmo possível apenas trocar o nome de uma secretaria de “turismo” para “secretaria de ensino superior” sem lhe alterar a substância. No segundo decreto, porém, o governador escancarou suas verdadeiras intenções. A principal delas, sem dúvida, era pôr sob rédeas curtas os reitores das universidades estaduais paulistas, submetendo o CRUESP, a princípio, ao secretário José Aristodemo Pinotti. Enfim, Serra mandou às favas a autonomia universitária, proclamada pela Constituição Federal.

Voltou atrás ao editar novo decreto, dito “declaratório”, fazendo loas à autonomia universitária, mas não desfez o que havia produzido de pior até então: a ruptura do estado democrático de direito. Sua atitude violou o princípio da separação de poderes porque, extrapolando sua competência, usurpou a que é conferida à Assembléia Legislativa paulista. É que Serra, como governador, não tinha e não tem competência para, por meio de decreto, criar a secretaria de ensino superior e extinguir a de turismo. Dispor a respeito dessas matérias é atribuição que a Constituição do Estado de São Paulo reserva à Assembléia Legislativa. Para esse fim, a Carta Política paulista exige lei e concede ao governador competência para apenas iniciar o respectivo processo legislativo.

Ao solapar o princípio da separação de poderes, basilar do estado democrático de direito, Serra atentou contra a moralidade administrativa, sobretudo pela forma dissimulada como agiu, à qual o professor e jurista Dalmo Dallari chamou de “fingimento” e “fraude”. Para casos como esse, a Constituição Federal (art. 5º, inc. LXXIII) põe à disposição de qualquer cidadão brasileiro um instrumento vigoroso, a ação popular, que tem por objetivo a anulação de atos lesivos ao “patrimônio público”, expressão que há de compreender não apenas o erário como também seu aspecto moral. Não há de ser outro o sentido da “moralidade administrativa” a que faz alusão o referido dispositivo constitucional.

A ação popular é regida pela lei 4.717, de 1965, cujo artigo 2º enumera cinco hipóteses de nulidade dos atos administrativos. O governador conquistou o feito de “gabaritar” as cinco, pois seus decretos enquadram-se em todas elas: incompetência, vício de forma, ilegalidade do objeto, inexistência dos motivos e desvio de finalidade.

Os decretos de Serra são nulos, em primeiro lugar, como já dito, por sua incompetência para criar secretarias de estado e órgãos da administração, assim como para operar a transformação de cargos, empregos e funções.

São nulos também por ostentarem vício de forma, pois a criação e a extinção de secretarias, assim como cargos e funções, como visto, há de operar-se por meio de lei.

A ilegalidade do objeto, diz a própria lei da ação popular, “ocorre quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo”. Ora, nada pode ser mais grave do que a violação de princípios insculpidos na lei das leis, que é a Constituição Federal, a qual consagra a separação de poderes como princípio fundamental da República e de seu regime democrático.

A inexistência dos motivos – diz, ainda, o mesmo texto legal – “verifica-se quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido”. Explicando melhor, no caso concreto, a hipótese diz quanto à inexistência material de diversos dos cargos, órgãos e funções que foram efetivamente criados pelos decretos, mediante falseamento da realidade fática, por meio de simuladas “alteração de denominação” e “transferência”.

Por fim, o desvio da finalidade verificou-se porque o governador, a pretexto de apenas alterar denominação da Secretaria de Turismo, na verdade mirou e alcançou objetivo escuso, qual seja, o de driblar as exigências legais para criar e extinguir secretarias à revelia da Assembléia Legislativa. Ademais, tudo foi feito com o claro propósito de acorrentar os reitores das universidades estaduais paulistas, o que foi desmascarado quando o art. 41 do Decreto 51.461 foi modificado por novo decreto que, nesse particular e ao menos em parte, resgatou a autonomia universitária até então violentada.

Optou-se pela ação popular por ser um remédio jurídico eficaz para o enfrentamento da questão, sobretudo porque a ação direta de inconstitucionalidade, segundo orientação do Supremo Tribunal Federal, não se presta ao controle concentrado de constitucionalidade de ato que não seja “normativo”, vale dizer, que não tenha caráter de generalidade e abstração. Para controle de normas de efeito concreto, como é o caso, o sistema processual reserva as vias ordinárias, como o mandado de segurança (para proteção de direito subjetivo líquido e certo) e a ação popular (para a anulação de ato lesivo ao patrimônio público, à moralidade administrativa e a outros bens de relevante valor social).

A ação popular ajuizada pelos parlamentares petistas foi distribuída no dia 11 de junho à 3ª Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo. A juíza, até a presente data, ainda não apreciou o pedido de liminar.


Cabe agora ao Poder Judiciário, mais do que adotar uma postura meramente burocrática, a importante missão de restaurar a legalidade e o próprio estado democrático de direito, assim resgatando a dignidade do Poder Legislativo, aviltada pela atitude de um governador que, revelando seus pendores autoritários já no primeiro dia de seu governo, fez questão de mandar um recado aos parlamentares paulistas sobre quem é que vai mandar neste Estado nos próximos quatro anos.